Mulheres pássaros
Sônia Biscaia fala sobre seu projeto de Doutorado que virou espetáculo, do fazer teatral e do trabalho ao lado de Dedeco em “Mulheres pássaros”.
Os corredores da Feira do Livro de Joinville recebiam centenas de estudantes na manhã de sexta-feira, 6 de junho. Em uma das mesas da praça, o escritor Alexandre Rampazzo distribuía autógrafos. Sônia Biscaia estava na fila e o olhava com alguma expectativa, ela chegou mais cedo do que combinamos porque queria assistir a palestra do autor paulistano. Trazia livros dele em uma bolsa. Aproximei-me também com obras do Rampazzo e aguardamos nossa vez. Minutos depois, com os livros devidamente autografados, optamos por ir a um café, onde poderíamos conversar com tranquilidade. A contadora de histórias e atriz, doutoranda em Literatura e presidente da Ajote sentou-se, pedimos dois cafés e por cerca de uma hora, falamos sobre seu projeto, Mulheres Pássaros, que teve início durante a pandemia, está sendo finalizado este ano, como tese de Doutorado e, ao mesmo tempo, se transformou em espetáculo.

Sônia: Começou quando eu decidi voltar a estudar, depois de passar um tempo em sala de aula, então me inscrevi para o Mestrado e me mudei para Londrina, onde fiquei dois anos, lá fiz também dois cursos de teatro, um específico para mulheres e outro de rua. Este, de rua, acabou virando outra coisa porque na metade do curso veio a pandemia. Virou teatro de rua online, olha que coisa bizarra! (risos) Voltei para Joinville em meio à pandemia. Minha ideia nem era voltar, mas acabou o mestrado e com isso, foi-se embora a bolsa. A pessoa só tinha experiência com Educação e Cultura, no meio da pandemia, o que fazer? Voltei para cá.
“Os Tuparis acreditam que quando alguém ouve o canto do bacurau é o espírito da mulher bacurau anunciando que alguém muito próximo dessa pessoa, vai morrer.”
(trecho do espetáculo Mulheres pássaros)
Jura: O que mais Londrina lhe apresentou?
Sônia: Acho que essa coisa de ter me mudado para Londrina, onde eu não conhecia absolutamente ninguém e tive que, pela primeira vez, me virar sozinha, deu início ao que se tornou o Mulheres Pássaros. Eu pesquisava festivais de contadoras de histórias, conheci muitos artistas do Brasil. Foi em 2021 que, pela primeira vez, eu enviei projetos culturais para editais, fui aprovada em alguns e, quando vi que dava conta de fazer isso, passei a me dedicar a estudar mais os editais e preparar projetos. Foi quando eu comecei a viver realmente de teatro. Mas preciso falar que, durante a pandemia, eu estava terminando de escrever a dissertação e pesquisando festivais de contadores de histórias, então aconteceu o Ecoh – Encontro de Contadores de Histórias de Londrina, naquele ano veio muita gente interessante, eu entrevistei muitas pessoas. No último dia do evento, houve uma confraternização enorme, linda! E no dia seguinte começou o lockdown! Num dia, um evento social, no outro, eu fiquei totalmente sozinha, eu e minhas plantas. Num dia, aquela coisa linda de festival, de muita gente, no dia seguinte, apenas eu. O que não foi tão ruim, porque eu pude me dedicar à dissertação. Foi quando percebi nessas pesquisas, nas conversas com os artistas, que havia muito mais narradoras do que narradores.
Jura: Alguém especial?
Sônia: Uma dessas artistas, a Yohana Ciotti, pesquisava justamente o porquê de ter mais mulheres interessadas em contar histórias do que homens, estou falando de contar histórias como atividade profissional. Troquei muitas ideias com ela, até a trouxe para o Teias de Ananse, recentemente. Bem, ela tinha essa pesquisa sobre a mulher como narradora e coletou histórias de mulheres marinhas. Ela tinha muitas histórias de mulheres focas. Eu estava começando a pensar em pássaros e a gente trocou ideias dessa coisa de céu e mar.
Jura: E como foi o processo estando sozinha e com tempo?
O começo da pandemia pra mim não foi tão difícil, porque eu tinha acabado de absorver 500 milhões de entrevistas, então foi um momento em que eu me dediquei à escrita, à transcrição de horas de entrevista. Eu tinha o que fazer e tinha o tempo e o silêncio para isso. Mas, ao mesmo tempo, foi um baque no sentido de eu vir de uma família com cinco filhos e, de repente, me ver sozinha. Mas, sabe? Adorei ficar sozinha. Claro, seria melhor ficar sozinha em um contexto que não tivesse todo mundo morrendo do lado de fora, né? Mas assim eu descobri que eu sabia viver bem comigo. Claro que foi também um período de medo, eu não saía do apartamento para nada. Comprava o necessário de forma online, a portaria pegava, colocava no elevador e mandava subir, eu pegava as compras, passava álcool em tudo. Não vi ninguém nesse período. Ninguém! Foi um momento de muita pesquisa, e que permitiu irem surgindo essas histórias, essas ideias.
“Foi aí que o moço com toda a pompa pediu a mão de Alana em casamento. Ela primeiro aceitou, mas depois se arrependeu.”
(trecho do espetáculo Mulheres pássaros)
Jura: Você já pensava que isso poderia se transformar em espetáculo?
Sônia: Não. Essa questão das mulheres começou a me pegar muito forte. Eu queria ver por que tem tanta mulher contando, e fui descobrindo cada vez mais histórias. Mas eu não sabia o que eu ia fazer com isso ainda. Depois comecei o Doutorado na UFRGS, em Porto Alegre. Nessa pesquisa, eu fui descobrindo esses contos, que existia contos, que até então eu não sabia que existia tanto conto com mulheres que viraram pássaros e tal. Antes, em 2019, eu fui participar de um congresso no Pará, conheci várias vertentes das poéticas orais e acabei ouvindo muito a história da Matinta Pereira, que é essa bruxa que durante o dia é mulher e, à noite, vira pássaro. Depois, quando terminei a faculdade, morei em Florianópolis por um ano, e pesquisei as diferenças entre as bruxas da região Norte e as da região Sul.
Jura: Há muita diferença?
Sônia: No Norte, a Matinta Pereira é uma encantada poderosa. Lida com destino, com promessas. A bruxa daqui, que conheci também pelo Cascaes, tem muito forte a questão da Inquisição. É a bruxa que tem pacto com o diabo, que come criancinha, mas que também se transforma em gaivota, se transforma em mariposa e entra nas casas. Tem também as diferenças entre bruxa e feiticeira. A bruxa já nasce bruxa, a feiticeira aprende a ser feiticeira.
Jura: Você bebeu dos clássicos, também?
Sônia: Eu fui pesquisar nos Grimm, em Perrot, em Afanasyev, em Italo Calvino, esses que coletaram contos da Europa de fadas e descobri outras várias histórias. Os irmãos Grimm têm várias histórias de mulheres que viram pássaros e não são as mais conhecidas. Ali, fui percebendo a presença feminina nos contos dos Grimm, há muitas histórias em que a princesa salva o príncipe, mas estão esquecidas em algumas antologias. Eu fui juntando o que via. E havia muitas histórias de mulheres pássaros.
“E foi nessa hora que o amor se transformou em fúria. O marido levantou a mão para a mulher. E Alana reviveu a rotina da dor e da brutalidade.”
(trecho do espetáculo Mulheres pássaros)
Jura: Como foi reunir tudo em um projeto, primeiro de Doutorado, depois de espetáculo teatral?
Sônia: A tese eu dividi em quatro capítulos: Heranças mitológicas; Como se utilizou dessas heranças no período da inquisição, foi daí que beberam das histórias mitológicas e modificaram a bel prazer para criarem as bruxas voadoras, malignas, que têm parte com o diabo; no terceiro capítulo, trago a herança colonial, da mulher que come criancinha em Florianópolis, essas relações todas do período da colonização nas Américas; por fim, no quarto capítulo, eu trago algumas histórias, buscando a questão decolonial, a ideia de emancipação da mulher.
Há muitas histórias de mulheres que viram pássaros para fugir da violência, doméstica, sexual, e também de mulheres que se transformam em determinada data ou época do ano, que tira a pele e põe para descansar. Há outras histórias também, em que possuir asas nem sempre é uma libertação. Ter asas é ficar preso em uma gaiola.
Jura: Sempre muito simbolismo, não é?
Sônia: Sim, muito. Fui buscando essas histórias e relacionando com cada tempo, das mitologias, da inquisição e pensar em como isso ainda reflete hoje, traçando um paralelo com o feminismo, a história da emancipação da mulher, tudo a partir dessas representações das mulheres aladas.
Jura: É isso que você está trazendo, esse é o contexto da peça? Eu queria que você falasse do espetáculo.
Sônia: Como falei antes, eu estava começando a acreditar que podia viver de cultura, então pensei, “Gosto tanto de histórias, eu quero trazer isso para um espetáculo também, quero mostrar, tirar essa pesquisa só do âmbito acadêmico”. Então, selecionei algumas das histórias que eu coloquei na tese, preparei um projeto que enviei para o SIMDEC, e passou. Chamei o Dedeco para me dirigir e iniciamos o processo, era assim, “Eu tenho essas histórias, mas o que eu faço com elas agora? Como eu transformo isso para colocar no palco? A gente foi construindo aos poucos. Muitas dessas histórias eram narradas por mulheres enquanto teciam, enquanto costuravam, enquanto faziam trabalhos árduos com as mãos, eu comentei isso com a Dê e decidimos utilizar essa metáfora, de tecer no espetáculo. Todo espetáculo foi construído por cordas, cada corda é uma das histórias que eu conto. No fundo, a gente colocou uma asa enorme, tecida em macramê, feita pela sobra da Dedeco, linda!
“Mas ela não podia mais. Não podia mais seguir o destino traçado pelo pai. O fio do seu destino estava sendo tecido para outras direções.”
(trecho do espetáculo Mulheres pássaros)
Jura: E a escolha das histórias?
Sônia: A Dedeco me ajudou a escolher, a bater o martelo. Foi difícil escolher entre tantas. A gente acabou selecionando três histórias, era pra ser quatro, só que todas as histórias que encontrei tratavam de casais heterossexuais, situação em que a mulher acaba fugindo do marido ou se casando com um homem. Dedeco já passou por tanta coisa, tanto preconceito. Eu falei, “Quero uma história de sapatão aqui! Quero duas passarinhas que possam voar juntas”.
Jura: Então, vocês criaram um conto contemporâneo?
Sônia: Então, a gente criou a nossa própria história. A quarta do espetáculo, escritas por mim e Dedeco. Com uma pegada de história oral, parecida com os outros contos. É a história de uma mulher que tinha seu destino traçado, ia casar com um cara que treinava para ser o melhor guerreiro da aldeia. Mas, desde criança, ela gostava de caminhar pela floresta e, lá, debaixo de uma grande árvore, ela escutava o canto de uma passarinha, a rendeira. Elas brincavam. Na véspera do casamento, ela resolveu passear na floresta e ouviu o canto da rendeira, distante da grande árvore onde costumava ficar. Ela se aproxima, devagar, e vê o exato momento em que a rendeira toca na água do rio e se transforma em mulher. Elas passam o dia juntas. Quando volta para a aldeia, ela não é mais a mesma, não consegue parar de pensar na mulher-pássaro… uma série de acontecimentos vem a seguir, de raiva, machismo, morte.
Jura: Feminicídio?
Sônia: É.
Jura: Pensei que vocês fariam um conto feliz.
Sônia: Ele acaba bem. No final, é feliz, sim.
Jura: Quantas apresentações foram feitas? Tem novas previstas?
Sônia: A gente estreou no dia 8 de março. E nem foi pensando no Dia da Mulher, foi porque a gente tinha prazo para concluir o projeto. Foi a data que tínhamos na Ajote, todas as outras estavam comprometidas.
Jura: Como foi a estreia?
Sônia: Eu estava muito nervosa no primeiro dia. Primeiro monólogo, nunca tinha estado sozinha em cena. O teatro estava cheio, com muitos teatreiros. Você olha e vê um nomão do teatro de Joinville, vira e vê outro, fiquei nervosa, mas foi gostoso. Foi muito positivo, nós tivemos alguns retornos muito bons. Apresentamos no dia seguinte também, acho que nesse dia as histórias foram fluindo melhor. Dia 14 apresentamos de manhã na Ajote, à tarde no CEU do Aventureiro e no dia 15, na Amorabi.
Jura: Quando vai estar em cartaz de novo?
Sônia: Está certo que em setembro devo apresentar esse espetáculo pelo projeto do PNAB, mas quero voltar com ele em outros momentos, fazer uma temporada longa. Acho que o espetáculo precisa ser apresentado, ganhar fôlego e tal.
“As mulheres uniram o seu poder e criaram um pássaro. O pássaro é a força da Grande Mãe. É a materialização do poder que só as mulheres possuem. É a representação coletiva do poder gerador feminino, sobre o qual os homens não têm controle.”
(trecho do espetáculo Mulheres pássaros)
Dona Francisca
Mulher longilínea, tem o pé no terminal e a cabeça no pé da serra.
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