Jura Arruda: A cozinha de Dona Elisa

Coluna: Conto Para Não Calar

A cozinha de Dona Elisa é agora um borrão em minha mente. Pouco lembro daqueles dias de cheiros e sabores, da porta que nos impedia até que ela saísse com o bolinho de chuva envolto num açúcar muito fino  ou a coxinha de frango fumegante.

Voltar anos depois não me traz de volta à casa modesta e impecavelmente limpa da senhora gorda, de sorriso fácil, dona de mil histórias que contava enquanto degustávamos e gemíamos com cada pedaço das guloseimas que colocávamos na boca. Voltar é encontrar o futuro que eu temia, que virou presente e ausência.

Era aqui que ela dormia. Mas a cama agora foi tomada por uma relva deslizante que espalha verde por cima de tudo, um verde como o da couve que brilhava ao lado do arroz com feijão. Em algumas partes, o verde era claro como o alface que ela deitava sobre o hambúrguer do lanche que nos alimentava de tudo o que me faz tanta falta agora.

O quintal tem cara de floresta e manhã sombria. Ao longe ouço um barulho metálico e sons de uma horda faminta. Um prenúncio de caos onde só havia canto de pássaros e, vez ou outra, o latido de Manjericão, o cachorro mais perfumado que eu já vi na minha vida.

Lembro de um alçapão que fica no banheiro e dá para o telhado. Subo. A antena ainda resiste, talvez sem captar qualquer sinal. Piso com cuidado, mas isso não me impede de quebrar uma telha e afundar até o joelho. Arde e sangra. Afasto os restos de telha quebrados e, segurando no joelho com as duas mãos, tiro a perna do vão. Levanto-me e avisto a cerca de cem metros de distância pessoas em busca de algo no lixo. Uma das mulheres olha em minha direção e grita. Não a ouço. Ela gesticula e volta a gritar. Um cachorro salta ao seu lado diversas vezes. Ela balança os braços e vem em minha direção. Seu andar é trôpego, parece a linha da máquina de costura de minha mãe, num ziguezague sem fim.

Uma nuvem carregada parece acompanhá-la e acaba por desabar uma chuva grossa sobre ela. Aos poucos, a mulher se aproxima e vejo que veste um saco preto, tem braços e pernas sujos. Em uma das mãos faz um peixe balançar de um lado para outro. O cachorro parece tentar pegá-lo, mas ela o ignora. Avança e a chuva parece segui-la, sinto os primeiros pingos, um raio se forma no horizonte seguido por um trovão que faz o telhado estremecer. Tem início uma ventania que faz a antena girar sobre seu eixo. Temo que ela se solte e me acerte. A mulher vestida de saco, com um peixe a balançar sobre sua cabeça aproxima-se e, finalmente a ouço: 

– Saia da minha casa, moleque! Saia daí! Quem mandou subir no telhado? Saia da minha casa – ela repete. É a voz inconfundível de Dona Elisa.

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Jura Arruda
Colunista

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